quinta-feira, 7 de julho de 2011

Enfim, só mais um de amor

- "Ela se matou por causa desse amor!" - disse a professora Elisabete, folheando um álbum de fotografias, junto com a inspetora Cláudia. No último dia de aula antes das férias, não se faz muito coisa mesmo, né...

Até aquela frase, o diálogo entre as duas não havia chamado a atenção de Maria Cecília. Ali, contudo, algo a transtornou: o que seria exatamente esse "AMOR". Seus quatro anos ainda não haviam esclarecido isso pra ela, muito embora fosse, aos olhos de muitos adultos que conhecia, uma criança prodígio.

Cecília, mesmo com a pouca idade, parecia saber já uma porção de coisas! Sabia que o estatuto da criança e do adolescente continha leis que protegiam a criança e o adolescente; já havia ido a Campinas, Bauru, São José dos Campos, Rio e Ribeirão Preto, Caconde...; tirava sons melodiosos da flauta doce; aprendera há muito tempo – talvez já há uns 15 meses – a como fazer bolinhos de chuva – a massa pelo menos...

Aquela situação, contudo, não lhe caiu muito bem. Percebeu, que, de fato, não sabia o que era o “AMOR”! Diabos!

...

Cecília começou uma investigação profissional! Não perdeu de prestar atenção nos diálogos em que aquela palavra fosse referida novamente. Fosse com a mãe, com o pai; na quitanda, onde toda tarde ia comprar chocolate Surpresa, com os primos mais velhos... Era toda interesse para esclarecer logo o que era aquilo que havia feito, ao que tudo indica, pelo menos uma pessoa morrer...

Não perguntava diretamente sobre o assunto. Achava indigno não conseguir descobrir sozinha, apenas a partir das evidências que o mundo lhe dava. E como não soubesse ler, nem a dicionários, livros, revistas, jornais, internet poderia recorrer. Ela não sabia nem a forma do “AMOR”.

...

Certo dia, na cozinha de sua casa, sua mãe conversava com a tia Tata, enquanto esperavam que o bolo de cenoura ficasse pronto. Dona Eliana leu alto o rodapé da capa de uma revista que estava ali por cima das coisas, há semanas:

- "Próxima novela das seis vai se chamar 'Amor aos pedaços', revela diretor"...
Cecília não perdeu tempo:

- Mãe, corta pra mim onde a senhora leu "AMOR"?

A mãe cortou cuidadosa, achando graça no pedido da filha. Não perguntou porquês, com medo de intimidar o interesse da menina.

Cecília tomou a palavra na mão. Ainda restava o pedaço da próxima palavra: “AMOR A”.
Então tinha nas mãos o “AMOR”. Ainda que não tão bem cortado, imperfeito... Ali estava. Sentia-o, liso, fresco, destacado do seu todo, mas, pensava, potencialmente grande, e eclético. Parecia bem simples: "A-M-O-R". Conseguia identificar que eram quatro letras. Olhou por algum tempo, muito menor do que o tempo que se demora para descrever a cena.

Caso resolvido!

Antes de passar para o próximo - uma curiosa pesquisa sobre a Hungria -, colou o pedaço de papel na agenda, no dia corrente... 07 de julho.

Foi com algum descuido que, ao tentar tirar o excesso de cola, rasgou parte da palavra.

- Ai... rasguei! - falou desolada.

Ficaram dois pedaços ligados por um pedacinho frágil de papel: “AM” e “OR A”.

Consertou como pôde, com fita adesiva. Ficou com medo de que houvesse represálias por parte de algum poder divino. Era sempre bom ter algum cuidado, né...

...

Um dia, 50 anos depois, a professora aposentada Maria Cecília achou seus diários antigos, mexendo nas velharias em um quarto empoeirado. Morava no Jardim Bom Pastor, em Santo André, perto da grande São Paulo.

Seu primeiro "AMOR" ainda estava ali, evidentemente meio rasgado, guardado nas páginas do primeiro diário. Parecia envelhecido, junto com as páginas de todos aqueles dias de julho...

Lembrou que “Amor aos pedaços” não havia sido uma boa novela...

4 comentários:

escritor@ disse...

Belo texto, com referências pessoais! rsrsrs. Gostei!

Leandra Marcondes disse...

Nossa Alê!
putz! que dizer... realmente não sei...
bom... acho que todo primeiro amor fica meio assim... rasgado, guardado, por ser o primeiro, pode não trazer boas lembranças, por ser o primeiro, e não saber lidar ao certo com aquilo... um certo lidar infantil; mais, eu adorei a forma como voce produziu esse texto... com uma certa metáfora (corrija-me se eu estiver errada, por favor). Mas, belíssima forma. Bom! Bravo! =D
até mais!
Grande abraço!

* Leticia * disse...

Ah Ale!!
Que texto inspirador... me dá até vontade de escrever novamente, mas ma falta algo ainda... dentro de mim.

Eu suponho que Maria Cecília deve ser alguém bem próximo a você.
Obrigada por dividir seus textos Alê!!
Quem sabe eu não me inspiro na sua... sensibilidade e volto a escrever... Te vejo amanhã se tudo der certo, Aniversário da Pri pri

Claudinha ੴ disse...

Oi Alê!
Fiquei muiiito feliz com sua visita e muito lisonjeada com suas palavras. Eu vim conhecer seu blog... Até o momento, li este texto e adorei! O amor aos pedaços sonhado na adolescência se transforma em pedaços de amor quando a vida escreve em nós as suas linhas... Fatos? Ou imaginação? De qualquer maneira, um texto muito bem escrito. Vou segui-lo! Boas férias e até a volta!