sexta-feira, 27 de outubro de 2006

Depois do fim do dia


Da atmosfera mais caótica e inanimada do meu cotidiano, libertei-me para transcender o mais politicamente adequado e esperado.

Quando cheguei em casa, razoavelmente mais cedo do que costumo, vislumbrei um fim de noite muito parecido a todos os outros fins de noite que já tive na vida. Sentaria-me em frente ao computador para ler alguns e-mails, mandar outros recados e esgotar todas as poucas e pífias utilidades de trânsito virtual. Antes, porém, olhei inutilmente a despensa, procurando bolachas que eu sabia não ter. Por medo de deixar e-mails recebidos de última hora não lidos, atualizei seis vezes minha caixa de entrada, aproveitando nos intervalos entre a terceira e quinta checada, para verificar também novamente se já não havia dado tempo suficiente para uma alma bondosa e visionária me presentear com um pacote de bolachas. No final, nem e-mails, nem comida.

Quando me encaminhava para cama, deu-se a chegada de um amigo. Ele estava emocionalmente mais animado, e isso era fácil de notar pela velocidade de sua voz e a versatilidade de suas expressões – máscaras ideais para dar o tom exato das personagens que povoam seus microcontos cotidianos.

Animei-me por conta de sua disposição, deixando-me acordado e ainda sob o foco das luzes que me indicavam como um possível interlocutor para diálogos de ordem subjetivas.

No entanto, contrariando as expectativas meteriológicas para noite, as quais sempre traço antes de entrar em casa, começa uma chuva irremediavelmente adequada e aconchegante. O barulho das gotas no chão lembravam a dança que o vento proporciona para as folhas secas no outono; o clima foi embebecido por uma atmosfera molhada, ávida por novos ares; os espíritos calaram a arrogância do ser humano, libertando-o para induzir corpo e mente a uma entrega ao consciente viver e inconsciente pensar.

Meu amigo e eu entregamo-nos à chuva, deixando que a água, mais do que molhar mãos, braços, pernas, roupas e cabelos, nos remetesse a um estágio de vida fascinantemente pueril, no qual os caminhos pelos quais nosso corpo seria visto correndo fossem escolhidos mais por uma necessidade de ganhar um espaço do que por utilidade desse mesmo espaço para chegar em algum lugar. Corremos pelo concreto, rindo por aquilo que de mais abstrato poderia causar humor: a possibilidade de nos deixar envolver por algo mais, que não fosse a certeza de uma noite tranqüila: poças d´água, pulos no ar e quedas no chão.

Tratou-se de uma chuva rápida; suficiente para que reverenciássemos toda volta do e no quarteirão, com centelhas de vida e cacos da explosão de um bem-querer viver.

Felicidades eternas e, nos vemos.