quarta-feira, 13 de maio de 2009

A sensibilidade dos capitães



Terminei minha segunda leitura de Jorge Amado. O saldo final é positivo. O escritor consegue colorir com bastante sensibilidade a vida dos meninos de rua da Bahia - com toda certeza, não só da Bahia. Acho que alguns dos juízos críticos que fazem a respeito de sua obra hiperbolizam os defeitos da narrativa - a oralidade como desculpa para o descuido gramatical, como afirma Bosi, por exemplo -, colocando em segundo, terceiro, quarto planos os aspectos positivos da leitura do escritor baiano.

Leiam um trechinho do livro "Capitães da areia":

Volta Seca e o Sem-Pernas nunca haviam acolhido uma com tanto entusiasmo. Eles muitas vezes já tinham visto um carrossel mas quase sempre ouviam de longe, cercado de mistério, cavalgadas seus rápidos ginetes por meninos ricos e choraminguentos. O Se Pernas já tinha mesmo certo dia em que penetrou num Parque de Diversões armado no Passeio Público chegado a comprar entrada para um, mas o guarda o expulsou do recinto porque ele estava vestido de farrapos. Depois o bilheteiro não quis lhe devolver o bilhete da entrada, o que fez com que o Sem-Pernas metesse as mãos na gaveta da bilheteria, que estava aberta, abafasse o troco, e tivesse que desaparecer do Passeio Público de uma maneira muito rápida, enquanto em todo o Parque se ouviam os gritos de: Ladrão!, ladrão! Houve uma tremenda confusão, enquanto o Sem-Pernas descia muito calmamente a Gamboa de Cima, levando nos bolsos pelo menos cinco vezes o que tinha pago pela entrada. Mas o Sem-Pernas preferiria, sem dúvida, ter rodado no carrossel, montado naquele fantástico cavalo de cabeça de dragão, que era sem dúvida a coisa mais estranha e tentadora na maravilha que era o carrossel para os seus olhos. Criou ainda mais ódio aos guardas e maior amor aos carrosséis distantes. E agora, de repente, vinha um homem que pagava cerveja e fazia o milagre de o chamar para viver uns dias junto a um verdadeiro carrossel, movendo com ele, montando nos seus cavalos, vendo de perto rodarem as luzes de todas as cores. E para o Sem-Pernas, Nhozinho França não era o bêbado que estava em sua frente na pobre mesa da Porta do Mar. Para seus olhos era um ser extraordinário, algo como Deus, para quem rezava Pirulito, algo como Xangô, que era o santo de João Grande e do Querido-de-Deus. Porque nem o padre José Pedro e nem mesmo a mãe-de-santo Don’Aninha seriam capazes de realizar aquele milagre. Nas noites da Bahia, numa praça de Itapagipe, as luzes do carrossel girariam loucamente movimentadas pelo Sem-Pernas.Era como num
sonho, sonho muito diverso dos que o Sem-Pernas costumava ter nas suas noites angustiosas. E pela primeira vez seus olhos sentiram-se úmidos de lágrimas que não eram causadas pela dor ou pela raiva. E seus olhos úmidos miravam Nhozinho França como a um ídolo. Por ele até a garganta de um homem o Sem-Pernas abriria com a navalha que traz entre a calça e o velho colete preto que lhe serve de paletó.


Nessa narrativa, os meninos de rua apelidados de Capitães da areia, ganham a oportunidade de trabalhar por alguns poucos dias para o funcionamento de um velho carrossel. Volta Seca e Sem-Pernas desfazem-se de sua auto-proteção contra o mundo real para se entregarem às fantasias e hipnotismos suscitados pelas voltas do carrossel e seu conjunto de luzes. Trata-se da releitura do mundo em que vivem e, embora esta releitura se dê sob parâmetros da vida miserável que levam, há espaço para manifestação de uma sensibilidade em latência.

Não devemos cair nos reducionismos que o próprio narrador da história sugere, dizendo que os capitães são meninos com vida de homens feitos; existe no texto uma atmosfera para a própria contestação da sensibilidade humana, na sua forma universal.

Ainda tenho algumas questões mal resolvidas sobre a leitura, mas acho que posso saná-las em outros espaços, deixando vocês à vontade para uma navegação mais tranquila... para aqueles que se animarem, boa leitura!

Nos vemos.

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